Itaúnas: forrós e espiritualidade…
admin | 2 de fevereiro de 2008Itaúnas também pode ser considerada, assim como Trancoso, Canoa Quebrada, Pipa etc. uma destas pérolas do litoral que sofreram uma série de mudanças ao longo das últimas três décadas. A vila tem um significado especial para nós porque foi ali que em 1985 eu e Canário nos conhecemos e demos início a vários projetos, inclusive uma caminhada de Itaúnas até Porto Seguro em 1993.
Dos vários personagens que apresentamos a seguir, um que se encontra totalmente na ativa é o nosso velho amigo Júlio, o primeiro “estrangeiro” a chegar e morar em Itaúnas lá pelos idos de 1979. Detalhe, eu fui o segundo! Hoje, nosso anfitrião vive regendo a Nave, como chama a sua pousada, e tratando das coisas espirituais. Júlio é uma das figuras mais influentes na história do Santo Daime que pratica até hoje, tendo inclusive a façanha de ter esculpido as portas do Templo, lá no longínquo Mapiá, no Amazonas. Ainda hoje, fora de temporada, é possível respirar espiritualidade pelas ruas de grama da ainda pacata e sonolenta Itaúnas.
Itaúnas do Espírito Santo…
Conheci a Vila de Itaúnas em 1980, por puro e simples acaso, quando alguns amigos de Vitória convidaram-me para passar o carnaval numa praia de Conceição da Barra, a 8 km da divisa com a Bahia. Foi amor à primeira vista! Na década anterior a antiga Vila de Itaúnas havia sido coberta pelas dunas num fenômeno muito interessante. A vegetação que circundava a vila foi cortada o que fez com que os fortes ventos que ali sopram cobrisse a cidade de areia. Este “desastre ecológico”, de certa forma, acabou beneficiando a Itaúnas de hoje, já que grande parte dos turistas vão lá para ver a cidade soterrada. O que causa uma tremenda decepção, no princípio, porque eles chegam lá e perguntam. Onde esta a cidade soterrada? Ao que os nativos prontamente respondem. Ora, embaixo das dunas… Em 1980 não havia água encanada, luz elétrica ou pousadas. Nem mesmo os nativos tinham o costume de hospedar as pessoas. Mas a amabilidade do povo de Itaúnas era tão forte que ninguém ficava sem lugar para dormir. Nós tivemos o privilégio de ficar hospedados na escolinha velha. Muitas vezes, pela manhã, acordávamos sob o olhar admirado das crianças que vinham nos bisbilhotar nas janelas. Os bares ainda eram poucos; Manoel, Naelson e Antero. O bar do Antero era o mais rústico, apenas uma casinha de adobe onde se vendia cipó-cravo (cachaça típica da região) sempre e às vezes cerveja. Mas era um dos mais freqüentados, porque era ali que aconteciam os forrós mais animados. Sob a lua cheia soava a sanfona de Tulinho, os pandeiros de Paulo e Arnaldo, o violão de Valdemir além do reco-reco que ia de mão em mão. Havia um tronco que ia de uma porta a outra do bar onde todos ficavam agarrados, bebendo, conversando e logo namorando. Apelidamos o tronco de “pau do Antero” e não havia aquele que fosse a Itaúnas naqueles tempos que não pegasse no “pau do Antero”. Entre as dunas na beira da praia, onde esta enterrada a Itaúnas velha e a nova Itaúnas esta o rio Itaúnas (ita-pedra, una-negra) de águas negras, porém límpidas. Como não havia ponte a travessia tanto da população nativa como dos turistas era feita por canoa. O melhor canoeiro da época foi o Valmirzão, um caboclo de 1.90 de altura que trabalhava das 6 da manhã às 6 da tarde levando passageiros e mercadorias. Tomava uma garrafa de cachaça por dia mas no vigor da sua juventude e no esforço diário queimava esta energia muito bem. Depois que fizeram a ponte Valmirzão perdeu o seu ofício de canoeiro e já então o litro de cachaça começou a prejudicá-lo. Passou por momentos difíceis, na sarjeta, mas com a ajuda dos amigos, hoje se pode vê-lo vindo do mar cruzando as dunas sob o forte calor de janeiro trazendo seu peixe para casa com um belo sorriso no rosto. Outro personagem folclórico de Itaúnas era o Seu Tamandaré, que por amor ou teimosia, vivia do outro lado do rio brigando com as dunas. Atravessávamos o rio de canoa e íamos a pé pelo caminho do Tamandaré. Lá sentávamos próximos a uma farinheira e então tinha início o banquete tropical que quase sempre começava com a água de coco, depois a melancia, o abacaxi e às vezes a cana. Muitos tinham de pensar duas vezes para prosseguir até a praia. O Tamandaré nos deliciava tanto com o banquete (ele nunca sabia dizer o quanto era a despesa) como com suas histórias, os causos. Dali até a praia tínhamos de atravessar ainda um corredor entre as dunas aonde o vento não chegava e o calor era insuportável. Do lado de cá, na vila, ficavam os nativos mais velhos, debaixo de uma cabana coberta por palha de coco sob o forte sol de janeiro, deliciando-se com os turistas menos avisados que davam verdadeiros urros de terror quando pisavam nas areias escaldantes. A nova Itaúnas já mudou bastante nestes últimos 28 anos. Mas a velha prática de ir para as dunas no final da tarde para ver o pôr do sol não. Nos dia de lua cheia um espetáculo inesquecível! A oeste o sol se pondo, tendo a contra luz cavalos que pastavam nos brejos imensos próximos ao rio. A leste, a imensa lua cheia nascendo no mar. Num determinado momento pode-se estar entre o dia e a noite e aí sim, extasiados, voltar para Itaúnas energizados para mais uma noite de forró. Não mais no “pau do Antero”, como antigamente, mas agora no Buraco do Tatu, de propriedade do Tatu, seu neto…
Itaúnas além das dunas…
Conheci Itaúnas há 28 anos atrás quando o único bar do local era a palhoça do Manoel Nogueira. Como não havia luz a cerveja era conservada em caixas de isopor com gelo. Era comum o Seu Manoel ir dormir e nós ficávamos tomando cerveja e jogando conversa fora nas noites de lua. Pela manhã ele contava os cascos e apresentava a conta. Foi ali que conheci Canário em 1985 e onde vários projetos surgiram. A vila tornou-se famosa devido a um desastre ecológico. Houve um corte descontrolado da vegetação em torno da cidade e os fortes ventos fizeram com que enormes dunas cobrissem a cidade lentamente. Aos poucos as pessoas foram cruzando o rio e construindo a nova Itaúnas. Isto foi na década de 70. Hoje Itaúnas tem água, luz, pousadas, restaurantes, uma base do Projeto TAMAR além de sediar o Parque Estadual de Itaúnas. Mas a vila é conhecida nacionalmente como a terra do forró. É comum no verão ou mesmo no mês de julho ver grupos de jovens universitários vindos de São Paulo e Belo Horizonte principalmente, invadir Itaúnas para deliciar-se no Buraco do Tatú até o raiar do dia embalados pela xiboquinha (bebida típica da região). Itaúnas como vários “paraísos” do litoral do Brasil tipo Jericoacoara, Trancoso, Búzios, etc, mudou. Muita gente que visita a vila não imagina a quantidade de histórias e personagens que a vila produziu. Muitas destas pessoas faleceram como o Antero, Reivilzinho, Zico, Delmira. Cada um deles daria um livro. Mas, ainda hoje podemos conversar com alguns deles. Dona Tidú pode ser considera a madrinha da vila, já que todos ali passaram pelas suas mãos ao nascer. A maior parteira de Itaúnas é uma senhora negra e forte de cerca de 80 anos que não economiza palavras, conversar é com ela mesma. Fala sobre tudo, principalmente das ervas medicinais da qual é grande conhecedora. O que mais impressiona na Tidú é que enquanto ela esta conversando sempre passa um ou outro para lhe pedir um conselho, tomar a benção ou simplesmente ficar ali parado ouvindo suas histórias. É uma líder nata. Ela aproveita também sempre para mandar um “moleque”, um dos seus afilhados, ir à venda comprar alguma coisa.
Outros dois personagens centrais de Itaúnas são o Sr. Dodo e o mestre Antero, já falecidos. Este último era considerado o líder espiritual da vila. Grande contador de histórias era o maior incentivador do Ticumbi, manifestação folclórica que representa a luta de mouros e cristãos encenada a mais de três séculos. O Sr. Dodo era considerado o habitante mais bem humorado de Itaúnas. Gostava de carnaval, dançar, cantar, mas sua maior diversão mesmo era sacanear os outros. Eram brincadeiras leves, pegadinhas, sinalização para futuras amizades. Estas duas famílias são proprietárias de bares em pontos extremos da vila. De um lado esta o Paulo, filho do Antero, vascaíno doente e diretor do Itaúnas Futebol Clube. Do outro esta o Naelson, filho do Dodo, flamenguista doente. Eu e Canário que somos vascaínos doentes freqüentamos os dois bares, mas confesso que um dos maiores prazeres do mundo é tomar uma cerveja no Naelson quando o Flamengo perde. Suas explicações “técnicas” sobre a derrota são hilárias. Além disto, o bar do Naelson talvez seja o último de Itaúnas onde os pescadores nativos ainda se reúnem para tomar uma cachacinha e colocar os papos em dia. Ali podemos encontrar o Mestre Didi, pescador que até os 47 anos de idade era titular na ponta direita do Itaúnas Futebol Clube. São pessoas simples, a alma da velha Itaúnas, talvez os últimos que viveram e podem relatar as histórias da Itaúnas engolida pelas areias. Nestes 28 anos acompanhei todo o processo de mudança da vila. A chegada da luz e da televisão foi impactante. Depois a instalação do Parque Estadual e a consciência ecológica. Por último o boom das pousadas e restaurantes. Muita coisa mudou para a população de Itaúnas, e para melhor sem dúvida. Quem visitar Itaúnas com certeza vai deliciar-se com suas águas mornas, com o belo pôr do sol visto das dunas, com a moqueca da Teresa, e claro, com o forró lá no Buraco do Tatú. Mas se possível, passe uma tarde no bar do Naelson sem fazer nada , só olhando, observando as pessoas. Quem sabe se voce também não encontra com a Tidú pela rua e receba uma receita de chá ou, com sorte, algum conselho. Com certeza ela não vai cobrar…
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